Água fria

Água fria

A água atravessa o trabalho de Miguel Moreira como um elemento simultaneamente poético e físico, simbólico e visceral. Não é decorativa, nem metafórica por conveniência: é matéria em estado de tensão e transformação. A água, em cena, goteja, inunda, pesa, limpa, desgasta. É corpo e é memória. Está nos gestos que escorrem, na palavra que se desfaz, na poética do exílio que permeia muitos dos seus espetáculos.

Se o corpo, no teatro de Miguel Moreira, é sempre um lugar de confronto — entre o sagrado e o grotesco, o animal e o político —, a água surge como um veículo desse confronto: ela dissolve fronteiras, desfaz a forma rígida, revela o fluxo subterrâneo das emoções, das histórias e dos fracassos.

Há algo de profundamente ritualístico na forma como ela é usada — como se os espetáculos fossem uma travessia, uma purificação, uma submersão.

A água, em Miguel Moreira, não é apenas estética: é política. É o elemento da fragilidade, da adaptação, da resistência silenciosa. Num tempo de secura e rigidez institucional, a cena molhada de Miguel é um gesto de vida — líquida, escorrida, indomável.